Por Manuela Borges

Biossíntese é a habilidade de transformar bactérias, fungos e algas, por exemplo, em fábricas de medicamentos

Parece história de ficção científica, mas já é realidade do outro lado do mundo. A Piauhy Labs – empresa de biotecnologia instalada em Portugal – trabalha para modificar o DNA de organismos vivos com o objetivo de fabricar os chamados “canabinoides menores”, substâncias produzidas em pequena quantidade pela Cannabis. Diferentemente do processo sintético, que é a criação de uma droga em laboratório, a biossíntese é a habilidade de transformar geneticamente algum organismo para que ele produza uma substância para você. É assim que o Eduardo Sampaio, CEO da Piauhy Labs, descreve o processo.

“A insulina, que os diabéticos não produzem no pâncreas, é produzida por meio de uma bactéria geneticamente modificada. Em 1976, a Roche patenteou o medicamento. A biossíntese é isso! A habilidade de transformar um organismo vivo em uma fábrica de medicamentos. Dentro do mundo canábico também é possível produzir canabinoides a partir da levedura, de fungos e algas, por exemplo”, projeta o executivo.

Eduardo Sampaio, que é brasileiro, explica que a maior dificuldade desse processo é modificar geneticamente o organismo. Entretanto com a biotecnologia em mãos, segundo ele, é bem mais simples e fácil replicar o feito. “Ao invés de esperar de 3 a 4 meses para fazer a colheita, o processo de fermentação leva dias. Não queremos extrai CBD e nem THC. É muito fácil extrair isso da planta. Queremos, por exemplo, produzir o canabinoide número 50, ainda sem nome, que não existe em larga quantidade na Cannabis. Para se tornar algo interessante para a indústria farmacêutica toneladas teriam que ser cultivadas para a extração dessa substância. Com a biossíntese, podemos replicar em larga escala os canabinoides menores que também têm uso medicinal importante. Dessa forma, a biossíntese é mais interessante para a produção de alguns canabinoides em termos de escalabilidade”, detalha o CEO.

(Eduardo Sampaio, CEO Piauhy Labs)

“No mundo inteiro há 10 vezes mais produção de Cannabis do que consumo. Atualmente mais de 80% das empresas estão dedicadas ao cultivo. Cerca de 10 a 15% focadas no cultivo e na extração, e apenas 1% ou 2% apostam, exclusivamente, em ciência ou biotech”

Esse trabalho minucioso na decodificação e isolamento dos canabinoides menores remete a uma medicina personalizada que já está em curso em algumas partes do mundo e até aqui no Brasil. Segundo Sampaio, a ideia é trabalhar em parceria com alguns laboratórios que já fazem o mapeamento genético do Sistema Endocanabinoide para fornecer medicamentos “on demand”, ou seja, sob medida para atender às demandas de cada paciente. “O paciente recebe o mesmo diagnóstico, o médico prescreve o mesmo medicamento, mas os organismos são diferentes e respondem de forma distinta. O jeito que cada um metaboliza cada substância é diferente. O Sistema Endocanabinoide é muito mais complexo do que o sistema metabólico dos medicamentos”, resume.

Apesar de a maioria da população brasileira sequer saber que existe um tipo de medicação personalizada a partir da combinação de fitocanabinoides, a evolução biotecnológica tem ampliado cada vez mais o acesso a esses tratamentos. De acordo com o Eduardo Sampaio, hoje já é possível fazer um mapeamento simplificado do Sistema Endocanabinoide por cerca de 200 dólares. “Esse é um exame que se faz uma única vez, seu DNA não vai mudar. Por meio da coleta da saliva ou de uma gota de sangue é possível verificar se o paciente é intolerante ao THC, se o sistema precisa de mais CBD. As variações entre as pessoas são grandes, por isso existe a medicina personalizada”, detalha o CEO.

Eduardo Sampaio explica ainda que ele e o sócio, que também é brasileiro, decidiram investir em biotech por perceberem que o cultivo da Cannabis está saturado. “No mundo inteiro há 10 vezes mais produção de Cannabis do que consumo. Atualmente mais de 80% das empresas estão dedicadas ao cultivo. Cerca de 10 a 15% focadas no cultivo e na extração, e apenas 1% ou 2% apostam, exclusivamente, em ciência ou biotech”. Os empreendedores buscaram investir em Portugal por razões óbvias. “Aqui, em Portugal, o governo não estabelece cota, não diferencia CBD de THC. Aqui podemos importar de outros países. O marco regulatório é exatamente o mesmo da indústria farmacêutica. Aqui, podemos acessar o sistema bancário e nos Estados Unidos, até hoje, não pode! Já na Colômbia, não se pode exportar flores. No Brasil, não se pode andar com a planta, só com insumos já processados. Muitos empreendedores ainda não entenderam isso. A Cannabis é duplamente regulada, por ser uma substância controlada e medicinal. Nesse mercado não é o que se deseja fazer, mas o que o marco regulatório permite. Não é à toa que Portugal se transformou no epicentro da Cannabis medicinal na Europa”, afirma o investidor.

Para o desenvolvimento dessa biotecnologia inovadora, a Piauhy Labs conta, para além dos laboratórios de mapeamento genético, parcerias com outras empresas de biotech, universidades e 10 pesquisadores envolvidos nos projetos. Entre eles, dois brasileiros: os neurocientistas Sidarta Ribeiro e Renato Malcher, autores do livro “Maconha, cérebro e saúde” de 2007. Os professores da Universidade do Rio Grande do Norte e da Universidade de Brasília, respectivamente, são percussores nos estudos científicos sobre a Cannabis no Brasil e grandes referências da academia brasileira e mundial. “Hoje em dia a gente sabe que existe o efeito comitiva da planta, que demostra a importância da interação dos diversos componentes da maconha para aumentar a capacidade dos efeitos positivos dos extratos. Entretanto, isso não significa dizer que não seja válido também a busca por situações em que canabinoides isolados sejam a melhor alternativa”, afirma o professor Malcher.

De acordo com o neurocientista, a metodologia do DNA recombinante é uma boa estratégia para desenvolver canabinoides com potencial medicinal que não são encontrados em abundância na natureza. “Ao invés de trabalhar com as linhagens da Cannabis que existem hoje em dia, para tentar obter quantidades suficientes desses canabinoides que são mais raros, uma metodologia mais produtiva é a do DNA recombinante”. Renato Malcher explica que os cientistas recombinam as moléculas de DNA em um organismo unicelular, como por exemplo uma levedura. A partir da localização de alguns os genes, e recombinação dos mesmos, é possível produzir uma maquinaria enzimática necessária para desenvolver um determinado canabinoide. “Assim como são feitas as cervejas, coloca-se a levedura em tanques gigantescos, os canabinoides se multiplicam dentro dessa levedura, e depois é possível pode isolar, fazer testes e avaliar o melhor uso, seja na forma isolada ou combinado a outros canabinoide”, detalha Malcher.

Published On: Junho 28th, 2022 / Categories: Notícias / Tags: /