Entre avanços e limitações, a revisão da norma levanta questões sobre burocracia, custos, cultivo nacional e os rumos da Cannabis medicinal no Brasil.
A regulamentação do uso medicinal da Cannabis voltou ao centro do debate no Brasil com a abertura da consulta pública para revisão da RDC nº 327/2019.
A proposta reacende discussões sobre acesso, segurança e viabilidade econômica desses tratamentos, além de expor entraves que persistem no modelo regulatório vigente.
Com isso, para entender o que está em jogo, é preciso antes compreender o papel das RDCs dentro da estrutura da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e como elas moldam o acesso à Cannabis medicinal no Brasil.
O que são RDCs — e por que elas importam
Sigla para Resolução da Diretoria Colegiada, as RDCs são normas emitidas pela Anvisa que regulamentam a produção, comercialização e uso de uma ampla gama de produtos.
Entre esses produtos temos: medicamentos, alimentos, cosméticos, produtos de higiene e, mais recentemente, itens à base de Cannabis.
No caso da Cannabis medicinal, as RDCs vêm sendo o principal instrumento regulatório para lidar com a crescente demanda por tratamentos alternativos para doenças como epilepsia refratária, dor crônica, autismo, Parkinson, Alzheimer e outras condições clínicas.
Diante desse cenário, duas RDCs se tornaram marcos importantes nos últimos anos: a RDC 327/2019 e a RDC 660/2022.
O que é a RDC 327/2019?
A RDC 327 foi a primeira norma da Anvisa a autorizar a comercialização de produtos à base de Cannabis em farmácias brasileiras, desde que mediante prescrição médica e com critérios técnicos rigorosos.
Publicada em dezembro de 2019 e em vigor desde março de 2020, ela estabeleceu as regras para fabricação, importação, comercialização, rotulagem e monitoramento desses produtos no território nacional.
Na prática, a resolução criou um modelo regulatório que possibilitou o início de um mercado formal de Cannabis medicinal no Brasil.
No entanto, a norma tem sido alvo de críticas constantes por impor barreiras regulatórias que dificultam o acesso efetivo aos tratamentos — como a exigência de importação de insumos e a proibição do cultivo nacional, o que encarece significativamente os produtos e limita sua disponibilidade.
O que é a RDC 660/2022?
Por sua vez, a RDC 660— publicada em 2022— regula um outro caminho de acesso: o da importação individual de produtos à base de Cannabis para uso pessoal, mediante prescrição médica.
Assim, essa norma não trata da liberação de produtos para venda em farmácias, nem exige registro sanitário por parte das empresas. Seu foco é viabilizar que pacientes brasileiros tenham acesso a produtos disponíveis apenas no exterior.
Apesar de ser um avanço em termos de acesso, o modelo também tem suas problemáticas: os altos custos, a dependência da importação e o tempo de entrega dos produtos ainda representam barreiras significativas para muitos pacientes.
Marco regulatório pede atualização urgente
Esses dois caminhos — um voltado à regulação do mercado interno, outro à importação individual — formam hoje a base do acesso à Cannabis medicinal no Brasil. Todavia, na prática, nenhum dos dois tem sido suficiente para atender às necessidades dos pacientes.
No caso da RDC 327, o problema é ainda mais evidente. Apesar de prever em seu próprio texto uma revisão até 2022, a resolução segue sem qualquer atualização, o que amplia a sensação de descompasso e descaso institucional diante de uma demanda crescente.
Esse atraso não é apenas uma falha técnica ou administrativa: ele compromete diretamente o tratamento de milhares de pessoas, que dependem desses produtos para manter sua qualidade de vida e garantir a continuidade terapêutica de forma segura e acessível.
Barreiras legais que viram obstáculos à saúde
Diante desse cenário de estagnação e barreiras ainda persistentes, a proposta de revisão da RDC 327 surge como uma tentativa de corrigir parte dessas limitações.
Entre os possíveis principais pontos em debate está a flexibilização do limite de THC (Tetrahidrocanabinol) nos produtos, atualmente fixado em 0,2% — valor que inviabiliza muitos tratamentos.

Advogada Maria José Delgado Fagundes
“São produtos necessários para certas patologias, que podem gerar maior qualidade de vida para os pacientes”, explica Maria José Delgado Fagundes, advogada especializada na área da saúde.
Além disso, a agência deve discutir sobre a polêmica exigência das Boas Práticas de Fabricação (BPFs) para produtos à base de Cannabis — especialmente porque a maioria desses produtos é importada de países que seguem normas próprias de produção, muitas vezes diferentes das exigidas pela legislação brasileira.
Na prática, isso significa que diversos produtos com eficácia reconhecida internacionalmente podem ser barrados no Brasil, simplesmente por não atenderem aos critérios técnicos locais — o que restringe ainda mais as opções terapêuticas disponíveis aos pacientes.
“Eu acredito que essa é uma discussão muito importante a ser feita, porque as boas práticas de fabricação podem implicar em barreiras comerciais com os países exportadores”, analisa Fagundes.
Ademais, outro ponto delicado é a publicidade. A norma vigente é bastante restritiva e o cenário não parece próximo de se flexibilizar.
“Como temos duas leis vigentes sobre essa questão que vão além da Anvisa, eu não acredito que haja muito espaço de manobra para mudanças nessa área. Mas fica a questão: como eu espalho a informação sobre esses produtos?”, questiona a advogada, apontando o dilema entre regulação sanitária e direito à informação — especialmente em um país onde a desinformação sobre Cannabis medicinal ainda é uma barreira.
Menos promessa, mais ação
A revisão da RDC 327 é mais do que uma atualização técnica: é uma oportunidade de corrigir distorções históricas que ainda restringem o acesso à Cannabis medicinal no Brasil.
A ausência de cultivo nacional, o excesso de burocracia e a desinformação institucionalizada formam um cenário que penaliza quem mais precisa — os pacientes.
Assim, a nova regulamentação pode — e precisa — ser um ponto de virada: mais transparente, acessível, segura e adaptada à realidade brasileira. O que está em jogo não é apenas uma resolução, mas o direito de milhares de pessoas a um cuidado mais digno, eficaz e possível.