Os canabinoides têm ganhado espaço na psiquiatria, mas o atraso em pesquisas e políticas públicas ainda impede o acesso pleno

O uso da Cannabis medicinal no tratamento de transtornos psiquiátricos tem ganhado cada vez mais espaço em consultórios e centros de pesquisa ao redor do mundo. Ainda assim, seu emprego na saúde mental continua cercado de dúvidas, resistências e lacunas científicas.

Ao contrário de áreas como neurologia ou dor crônica — que já contam com metanálises e diretrizes clínicas consolidadas para o uso da planta —, a psiquiatria ainda opera em uma zona cinzenta.

Quando o preconceito fala mais alto

Na psiquiatria, o uso de medicamentos fora das indicações formais — conhecido como off label — é amplamente adotado. No Brasil, estima-se que cerca de 40% das prescrições psiquiátricas sigam esse formato, principalmente quando envolvem substâncias com perfil de segurança já conhecido, mesmo que faltem estudos conclusivos para determinados transtornos.

A Cannabis medicinal também vem sendo utilizada nesse contexto. No entanto, apesar de seguir a mesma lógica, ela costuma enfrentar uma cobrança muito maior por evidências robustas, como ensaios clínicos de grande escala e metanálises.

Essa resistência se deve, em grande parte, ao preconceito histórico que ainda recai sobre a Cannabis — mesmo quando seu uso segue os mesmos critérios aplicados a outros tratamentos psiquiátricos. O resultado é um avanço mais lento na sua adoção como ferramenta terapêutica.

Diante desse cenário, conversamos com o Dr. Wilson Lessa (CRM-PB 14914 e RQE-7408) — médico psiquiatra e vice-presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia (AMBCANN) —, que compartilhou suas impressões clínicas sobre o uso da Cannabis na psiquiatria contemporânea.

Dr. Wilson Lessa

A partir desse diálogo e da revisão de estudos recentes, analisamos a seguir os principais transtornos mentais nos quais a Cannabis medicinal já demonstrou, em diferentes graus, potencial terapêutico.

Ansiedade: Evidências clínicas em destaque

A ansiedade é um dos transtornos mais prevalentes do mundo moderno. Dentro dela, a ansiedade generalizada e a ansiedade social têm sido alvo de estudos que sugerem benefícios do Canabidiol (CBD), especialmente na redução do desconforto em interações sociais e no controle da preocupação excessiva.

Embora as evidências ainda estejam em níveis intermediários na hierarquia científica, os relatos clínicos são frequentes e positivos.

“Essa parte da ansiedade é muito promissora. A gente vê isso diariamente em consultório, especialmente em pessoas com ansiedade social. Mas, por enquanto, ainda não temos estudos suficientes para compor uma metanálise”, explica o Dr. Lessa.

Esse potencial terapêutico é especialmente relevante quando se observa o contexto brasileiro: o Brasil lidera o ranking mundial de casos de ansiedade feito pela OMS, com mais de 18 milhões de pessoas afetadas — o que representa 9,3% da população.

Ademais, o CBD tem sido testado como alternativa preventiva ao burnout — uma síndrome de esgotamento emocional relacionada ao trabalho e que, segundo a Organização Internacional do Trabalho, já afeta milhões de profissionais. Os benefícios incluem melhora do sono, redução de pensamentos intrusivos e recuperação do foco.

Nesse contexto, uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto reforça as evidências destacadas por Lessa e o que já vem sendo estudado em outros países pioneiros como Israel.

Participaram da pesquisa 120 profissionais da saúde que atuaram na linha de frente da pandemia de Covid-19 em Ribeirão Preto — entre junho e novembro de 2020 — e os resultados surpreenderam: houve uma redução de 60% dos sintomas de ansiedade, 50% da depressão e 25% de burnout entre os voluntários que fizeram o tratamento padrão com canabidiol, em comparação com aqueles que receberam apenas o tratamento padrão. Os dados analisados indicaram melhora significativa após 14 e 28 dias de uso do fármaco.

Esquizofrenia: uma promessa esquecida

Um dos estudos mais instigantes no campo foi conduzido em 2012 pelo psiquiatra alemão Markus Leweke, que comparou o Canabidiol com a amissulprida — um antipsicótico muito usado no tratamento da esquizofrenia.

O resultado surpreendeu: os efeitos terapêuticos foram semelhantes, e o CBD ainda apresentou vantagens no tratamento dos sintomas negativos, como apatia e isolamento social.

“O Canabidiol teve uma melhora até mais significativa em sintomas como indisposição e isolamento social. E, em termos de efeitos colaterais, foi comparável ao placebo, enquanto o antipsicótico aumentava colesterol e causava ganho de peso”, relembra o especialista.

Apesar do impacto positivo, o estudo nunca foi replicado em larga escala, o que impede a formação de metanálises e o reconhecimento do CBD como alternativa formal na esquizofrenia — um transtorno que afeta mais de 20 milhões de pessoas no mundo.

TDAH: novas abordagens em estudo

Pacientes adultos com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) também vêm sendo contemplados em pesquisas recentes. Um estudo duplo-cego com formulação equilibrada de CBD e THC (Tetrahidrocanabinol) apontou melhora nos sintomas de hiperatividade, impulsividade e desatenção.

“Agora vamos liderar um estudo aqui na Paraíba com Canabigerol (CBG), outro fitocanabinoide, para investigar seus efeitos em adultos com TDAH”, compartilha o médico.

A proposta é avaliar o uso do CBG como um tratamento complementar, e não substitutivo, dos medicamentos já utilizados.

Depressão e Transtorno Bipolar: Segurança do CBD em destaque

Apesar de ser um dos transtornos psiquiátricos mais prevalentes no mundo, a depressão ainda é uma das áreas com menos evidência científica robusta quando se trata do uso terapêutico da Cannabis.

Como consequência, ainda não é possível afirmar com segurança que o CBD ou outros canabinoides tenham eficácia comprovada no tratamento desse transtorno.

No entanto, quando se trata de quadros depressivos dentro do Transtorno Bipolar, há um dado específico que chama a atenção da comunidade médica.

Um estudo conduzido no Brasil revelou que o Canabidiol, quando utilizado por pacientes bipolares que fazem uso de lítio, não desencadeou a chamada “virada maníaca” — um efeito colateral potencialmente perigoso de alguns antidepressivos, que podem levar o paciente de um estado depressivo direto para um episódio de euforia descontrolada.

“Isso é muito importante, porque mostra uma margem de segurança  que não tínhamos com os medicamentos convencionais mais utilizados”,  afirma o Dr. Wilson Lessa.

Esse achado não apenas sugere que o Canabidiol pode ser uma opção complementar mais segura para quadros depressivos dentro do espectro bipolar, como também aponta uma direção promissora para futuras pesquisas.

Embora os dados ainda sejam preliminares, eles ajudam a construir uma base científica sobre a qual se pode desenvolver protocolos mais específicos e seguros no uso da Cannabis medicinal na saúde mental.


Síndrome de Tourette: THC como aliado

A síndrome de Tourette, caracterizada por tiques motores e vocais involuntários, também tem sido estudada em países como a Alemanha. No entanto, ao contrário de outros quadros, o CBD isolado não mostrou bons resultados.

“Nesse caso, é o THC que tem se mostrado mais eficaz. O CBD purificado, sozinho, não ajuda”, afirma o médico.

Em Israel, inclusive, o THC já é aprovado como segunda linha terapêutica para a síndrome, permitindo ao médico prescrevê-lo com base nos sintomas individuais do paciente.

Transtorno de Estresse Pós-Traumático: THC pode trazer alívio

O TEPT é um dos quadros mais difíceis de tratar na psiquiatria, justamente por sua variabilidade entre os pacientes. Ainda assim, há um consenso crescente sobre o papel da Cannabis na melhora de sintomas secundários, como insônia e pesadelos recorrentes.

“São pacientes muito complexos. Alguns estudos são positivos, outros negativos. Mas o que é bastante interessante é a melhora do sono e dos pesadelos com doses baixas de THC”, relata o psiquiatra.

É um exemplo claro de como a Cannabis pode não resolver o quadro de base, mas aliviar sintomas que impactam diretamente na qualidade de vida.

Dependência química: Cannabis como redução de danos

O uso da Cannabis medicinal no contexto da dependência química tem sido uma das áreas mais instigantes da pesquisa recente. Um estudo brasileiro conduzido pela Universidade de Brasília (UnB) comparou o CBD com medicamentos comumente usados de forma off label (como fluoxetina e clonazepam) em pacientes dependentes de crack. O resultado foi surpreendente:

“Hoje, não temos nenhuma medicação oficialmente indicada para esses casos, a fluoxetina e o clonazepam são off labels muito utilizados. Entretanto, o Canabidiol teve uma eficácia maior no controle da fissura e da ansiedade nesses pacientes.”, comenta o especialista.

Além disso, há indícios de que o CBD pode ajudar na redução do consumo de álcool e tabaco, além de opioides. Em estados norte-americanos onde o uso recreativo da cannabis foi legalizado, observou-se uma queda nas taxas de overdose por opioides — um dos principais problemas de saúde pública nos EUA.

O Canabidiol também vem permitindo que muitos pacientes consigam reduzir ou até abandonar medicamentos de tarja preta, como benzodiazepínicos e hipnóticos da classe Z (ex: zolpidem), com melhora na qualidade do sono e menos efeitos colaterais.

Entre o atraso e a inovação

Com uma base crescente de dados, países como Israel já autorizaram o uso da Cannabis como primeira escolha para o tratamento de autismo e demência, e como segunda linha para Tourette e TEPT.

O Brasil ainda caminha em passos lentos, mas a ciência e os profissionais da saúde mental estão abrindo espaço para essa nova ferramenta terapêutica. O desafio agora é transformar as “pistas promissoras” em trilhas consolidadas. E, acima de tudo, garantir que pacientes possam ter acesso a tratamentos mais humanos, eficazes e seguros — mesmo quando a solução vier de uma planta que por muito tempo foi marginalizada.

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O uso medicinal da Cannabis já está regulamentado pela Anvisa desde 2014. Médicos, cirurgiões-dentistas e médicos veterinários – com registro profissional ativo – estão aptos a prescrever fitocanabinoides (moléculas medicinais da Cannabis).

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Published On: Junho 9th, 2025 / Categories: Notícias / Tags: /