Pesquisa da Universidade de Brasília avaliou mais de 100 produtos e aponta falhas na disponibilização de informações essenciais à prescrição e segurança do paciente
Um estudo inédito publicado no Journal of Cannabis Research avaliou, pela primeira vez, a qualidade da rotulagem de produtos à base de Canabidiol (CBD) disponíveis no Brasil. A pesquisa analisou 105 produtos autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e revelou que menos de 20% apresentam informações muito satisfatórias para o uso seguro e eficaz.
Encabeçado por Andrea Donatti Gallassi, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB, o estudo desenvolveu um sistema de pontuação com 45 critérios divididos em quatro categorias: prescrição, boas práticas de fabricação, testes laboratoriais e segurança de uso. Os dados utilizados foram coletados a partir das informações públicas fornecidas por fabricantes e representantes.
Motivação do estudo
Segundo a pesquisadora, “esse estudo surgiu por três razões”. A primeira foi a “dificuldade de prescritores e prescritoras em saber exatamente o que havia dentro desses produtos”, pois os rótulos e embalagens costumavam ser precários, muitas vezes sem bula e sem clareza sobre a quantidade de CBD em cada gota.
Além disso, ela ressalta o “‘boom’ dos produtos à base de Cannabis disponíveis no Brasil e no mundo” — um crescimento desordenado, com pouca fiscalização, que trouxe mais incertezas sobre o que de fato está sendo consumido.
Por fim, Gallassi pontua a necessidade de rever a forma como as RDCs vigentes (327/2019 e 660/2022) permitem a entrada de produtos sem um controle rigoroso sobre rotulagem e qualidade. “Isso abriu a possibilidade de pessoas importarem qualquer produto, sem saber ao certo o que há nele”.
A falta de CoA e os riscos para a segurança
Entre os principais achados da pesquisa, destaca-se a ausência de dados básicos: apenas 38% dos produtos traziam o Certificado de Análise (CoA), documento essencial para garantir a composição real da substância.“Não ter uma certificação de análise de qualidade que testa os compostos presentes naquele produto é um problema, especialmente quando se trata de medicamento”, comenta a pesquisadora responsável pelo estudo.
Segundo ela, a certificação é fundamental por atestar o que há dentro do produto, indicando a ausência de pesticidas e de outros contaminantes, bem como confirmando as concentrações exatas dos componentes.“É um carimbo de qualidade que mostra que aquele produto foi testado e que está sendo oferecido para o mercado com as indicações terapêuticas adequadas”, reforça. “Se boa parte dos produtos à base de Cannabis não apresenta o CoA, isso sugere que as empresas não estão preocupadas em atestar a qualidade ou talvez não queiram demonstrar que o controle de qualidade não esteja adequado. Então, é um problema mesmo.”
A falta de informações básicas de dosagem também preocupa. Menos de 30% informam, de forma clara, a equivalência entre dosagem em gotas e miligramas — fator indispensável para a segurança do paciente.“Vimos muitos produtos sem o CoA ou sem informações básicas de dosagem. Isso afeta diretamente o profissional de saúde na hora de prescrever e, consequentemente, a segurança de quem vai usar”, alerta a professora.
Diante desse cenário, torna-se cada vez mais urgente estabelecer regulamentações mais rigorosas e medidas de fiscalização eficazes, a fim de garantir que esses produtos atendam a padrões mínimos de qualidade e segurança.
O papel da Anvisa
Segundo Gallassi, a Anvisa tem um papel central na garantia da transparência e da segurança dos produtos comercializados no Brasil, o que inclui aqueles à base de Cannabis.
A pesquisadora destaca que se trata de uma agência séria e responsável, com histórico de rigor em diversas frentes — como se viu durante a pandemia de Covid-19, na aprovação de vacinas.
No entanto, ao conceder autorizações temporárias para produtos à base de canabidiol (via RDCs 327 e 660), a Anvisa também abriu espaço para a importação de itens cuja composição e rotulagem não necessariamente cumprem padrões de qualidade e eficácia. “A Agência já concedeu autorizações temporárias para facilitar o acesso ao produto, porém é o momento de exigir testes, ensaios clínicos e rotulagem completa, reavaliando o registro temporário para que só produtos seguros e eficazes permaneçam no mercado”.
Medidas imediatas para melhorar a rotulagem
Para corrigir as falhas de informações encontradas, Gallassi sugere um conjunto de ações prioritárias: “A primeira medida imediata é a Anvisa pressionar as empresas para que apresentem todos os seus testes, certificações e análises laboratoriais, comprovando a qualidade e a segurança do produto.” Ela destaca ainda a importância de que esses dados estejam facilmente acessíveis — tanto nas bulas e embalagens quanto nos sites oficiais dos fabricantes.
Além disso, defende que a Agência intensifique a fiscalização prevista nas RDCs em vigor, para que somente produtos que cumpram integralmente os requisitos de rotulagem e segurança cheguem ao consumidor.
Rotulagem ideal em um contexto brasileiro
Em um cenário ideal, a pesquisadora entende que um produto à base de CBD deveria trazer informações tão detalhadas quanto as exigidas para qualquer medicação controlada.
“É essencial informar a composição exata, em miligramas por mililitro ou por gota, além de apresentar o Certificado de Análise que comprove a ausência de contaminantes”, observa Gallassi.
Além disso, recomenda a inclusão de instruções de uso e armazenamento, possíveis efeitos colaterais e contraindicações, bem como resultados de estudos clínicos que comprovem a eficácia da formulação.
Próximos passos
A iniciativa propõe o uso do sistema de pontuação criado como ferramenta para a prescrição segura, além de incentivar pesquisas laboratoriais mais aprofundadas e estudos clínicos que avaliem a eficácia terapêutica dos produtos. Segundo Gallassi, “o próximo passo é iniciar um estudo de análise química dos produtos comercializados pelas associações brasileiras, em parceria com o Instituto de Química da UnB”.
Ademais, ela ressalta a intenção desse estudo de “colaborar para que as associações tenham produtos de qualidade, para que possam concorrer com produtos importados vendidos a preços altos nas farmácias”.
Ameaças e pressão das empresas
No dia 01/04/2025, durante a homenagem ao Instituto Agroecológico BioSer na Câmara Legislativa do Distrito Federal, a pesquisadora Andrea Donatti Gallassi trouxe a público um fato preocupante sobre o impacto do estudo. “De alguma forma, eu comecei a receber algumas ameaças, algumas afrontas das empresas que foram mal qualificadas no estudo”, declarou.
O relato de ameaças reforça a importância de garantir respaldo institucional para pesquisas independentes e de consolidar normas claras que protejam não apenas os consumidores, mas também os profissionais envolvidos em todo o processo de avaliação e desenvolvimento de produtos à base de cannabis.
O estudo coordenado pela professora Andrea Donatti Gallassi expõe um problema grave de transparência e segurança em produtos à base de Cannabis no Brasil. Assim, demonstrando a urgência de regulamentações mais claras e fiscalizações mais rigorosas, o que passa tanto pelas exigências da Anvisa quanto pela responsabilidade dos fabricantes.
Portanto, a iniciativa de criar um sistema de pontuação para a rotulagem e qualidade de produtos não só facilita a prescrição de forma segura, mas também se consagra como um passo importante rumo a um mercado mais confiável e, sobretudo, comprometido com a saúde e o bem-estar dos pacientes no Brasil.