STF, drogas!

Por: Mauro Machado  

O Supremo Tribunal Federal, mais uma vez, retomou o julgamento do recurso extraordinário que delibera sobre o uso de substâncias na sociedade brasileira.

Prefiro não chamar de drogas, pois no meu sentir, parece soar como algo ruim. Entretanto, vale dizer que droga é toda e qualquer substância, natural ou sintética que, introduzida no organismo, modifica suas funções. E tais alterações, não significa que algo ruim irá sentir ou acontecer.

Especificamente sobre os efeitos da maconha, cito o texto “OS FUMADORES DE MACONHA: EFEITOS E MALES DO VÍCIO”, apresentado pelo Dr. Rodrigues Doria, ao Segundo Congresso Científico Pan-Americano, em Washington, Estados Unidos, no dia 27 de dezembro de 1915:

Efeitos e males do vício

“Os sintomas apresentados pela embriaguês da maconha são variáveis —com a dose fumada, com a proveniência da planta, que pode conter maior quantidade dos princípios ativos, com as sugestões, e principalmente com o temperamento individual. Um estado de bem-estar, de satisfação, de feli- – cidade, de alegria ruidosa são os efeitos nervosos predominantes. É êsse estado agradável de euforia que leva a maior parte dos habituados a procurar a planta, a cujo uso se entregam com mais ou menos aferro. As idéias se tornam mais claras e passam com rapidez diante do espírito; os embriagados falam demasiadamente, dão estrepitosas gargalhadas; agitam-se, pulam, caminham; mostram-se amáveis, com expansões fraternais; vêem objetos fantásticos, ou de acôrdo com as idéias predominantes no indivíduo ou com as sugestões do momento. Dizem que a embriaguês da maconha mostra o instinto do indivíduo, como se atribue ao vinho — in vino ventas. Algumas vêzes dão em beberagem para obterem a revelação de segredos. A êsse estado segue-se às vêzes sono calmo, visitado por sonhos deliciosos. Há na embriaguês da maconha o fato interessante de, após a dissipação dos fenômenos, lembrar-se o paciente de tudo o que se passou durante a fase do delírio.” (grafia original)

Justifica a proibição?

Pergunto: esses efeitos justificam uma política de proibição dos usos da maconha? Efeitos similares justificam a proibição do uso de outras substâncias? Justifica-se a guerra às drogas?

De fato, o uso de substâncias merece controle. Riscos existem e, por essa razão, temos uma Agência Reguladora, já vinculada à saúde pública, específica para tratar da vigilância sanitária: a ANVISA. Demanda atenção, cuidado, respeito, moderação, acompanhamento e, em razão de tudo isso, a regulamentação se faz necessária. É o famoso plunct plact zum. Tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar, aqui lembrando Raul Seixas, Carimbador Maluco.

Brincadeiras à parte, muito importante sobressaltar a postura dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, em ressaltar a necessidade de investimento na saúde pública, na prevenção, no tratamento, no acolhimento de usuários. Inclusive, destacaram haver fundos públicos disponíveis para tal finalidade, de modo a prestigiar políticas pública voltadas à mitigação de danos.

Herança do racismo

Noutro cerne, a Corte Suprema também bem destacou que a opressão policial não surte efeitos. A política de guerra às drogas, traz a indevida herança do racismo que ainda persiste e com fortes reflexos nas comunidades mais carentes de amparo de políticas públicas sociais.

O racismo estrutural herdado de nossos antepassados, também foi lembrado por Rodrigues Dória em seu texto:

“Dentre esses males que acompanharam a raça subjugada, e como um castigo pela usurpação do que mais precioso tem o homem – a sua liberdade – nos ficou o vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo d’angola, maconha, e diamba, e ainda, por corrupção, liamba ou riamba”

“entre nós a planta é usada, como fumo, ou em infusão, e entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos feiticeiros, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos candomblés – festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, dêles descendentes, e que lhes herdaram os costumes e a fé, é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas dansas selvagens dessas reuniões barulhentas (…)” (grafia original)

Estado repressor

O racismo, em um primeiro momento, teve como foco o preto e o indígena. Depois, com a natural miscigenação, que dá cor ao belo povo brasileiro, o reflexo estrutural do Estado repressor persiste nos inúmeros bolsões de pobreza que perduram em todo território brasileiro. Locais, em que as políticas públicas sociais e de educação lutam arduamente para subsistir. Contudo, tais comunidades são fortemente alcançadas pela política opressora e ostensiva de segurança pública, que insiste subsistir.

Aliás, segurança pública é um dos pontos que traz maior incerteza em torno do resultado a ser alcançado pelo Supremo Tribunal quando concretizar o julgamento do recurso. E nesse ponto, uma mera caneta do Poder Judiciário, ao que parece, se mostra ineficiente, uma vez que se exige mudanças estruturais na própria forma de pensar e planejar segurança pública.

Lembro que os Ministros suscitam dúvidas sobre quem é o Juiz competente para dirimir questões sobre uso de drogas? Juiz Criminal? Juiz Cível? O usuário será abordado por policiais? Se não é crime, por qual razão conduzir à delegacia?

Se não é crime, por qual razão conduzir à delegacia?

O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal vêm cada vez mais firmando precedentes em processos de natureza penal, que denotam a necessidade de mudanças estruturais na segurança pública braseira. Dentre outros vários exemplos, debates sobre invasão de domicílio e sobre operações policiais em comunidades, sobre condições do sistema prisional, etc.

Veja, não se trata aqui de meramente criticar ou desprestigiar a atividade policial. Pelo contrário. A perspectiva é buscar o aprimoramento. A sociedade urge e conclama por mudanças, na defesa da vida. Da vida de todos, inclusive daqueles que se dedicam à segurança pública.

A mão estendida

Dentre as reflexões, tenho o pensamento [que demanda mais estudos], no sentido de que os Delegados de Polícia, muito mais do que meros agentes da estrutura da repressão policial do Estado, deveriam ser a “mão estendida” do Estado para orquestrar a organização pública, em torno da rede social e penal do Estado. Ou seja, exerceriam o “poder de polícia”, em sua concepção mais abrangente, de natureza administrativa-policial. Nem tudo que submetido à Autoridade Policial será tratado como crime, podendo oficiar em prol de respostas administrativas, sociais, saúde e, em “ultima ratio”, a atuação criminal. Ao mesmo tempo, agentes de polícia civil, com especializações em pequenos delitos, questões familiares, sociais, saúde pública, saúde mental, fiscalização pública em geral, seriam treinados, especializados e capacitados, para o atendimento de ocorrências diversas dessa natureza.

Daí, a grande dificuldade do Supremo Tribunal Federal de alcançar uma solução, uma vez que o debate exige mudanças estruturais nos rumos da segurança pública brasileira, visando, inclusive, alcançar um contexto de efetivação das igualdades, em que todos se sintam acolhidos pelo Estado e atendidos conformes suais necessidades.

Grupo multidisciplinar para estudar o caso

Por isso, entendo prudente ouvir a proposta do Ministro Dias Toffoli, na parte que sugere a criação de um grupo multidisciplinar, envolvendo várias competências, para deliberarem sobre qual melhor rumo tomar, a partir do julgamento do Supremo Tribunal Federal. Inclusive, isso não é novidade. Ocorreu no processo de regulamentação do uso religioso da ayahuasca, de forma bastante exitosa.

Nesse momento de incertezas, espero que o Supremo Tribunal Federal tenha bom discernimento para ao menos alcançar um resultado que defina objetivamente a quantidade de porte de maconha, de modo a sanar, de imediato, qualquer omissão legislativa e acatando o indicativo de criação do grupo de estudo, tal como sugerido por Toffoli.

Enquanto isso, mesmo àqueles que não podem em seu foguete viajar tranquilos pelo universo, desejo uma boa viagem!

Conheça o Mauro Machado

Pós-graduado em Direito e Jurisdição. Foi assessor do ministro Maurício Correa/STF, Exerceu a Advocacia por 11 anos. Atualmente é Analista Judiciário. Atuou como amicus curiae no processo que reconheceu a liberdade de expressão do debate sobre drogas. Membro-fundador do Clube Social de Cannabis do Distrito Federal. É colaborador da Associação medicinal Instituto BioSer.

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