Especialistas alertaram sobre o impacto negativo de uma possível mudança na Constituição para criminalizar porte e posse de qualquer quantidade de entorpecente
Na última quarta-feira (8), a Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública para debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 45), que objetiva criminalizar a conduta do usuário de substâncias.
Intitulada “PEC 45 Não!”, o evento, transmitido ao vivo para todo o país, contou com a presença de autoridades dos campos jurídico, científico, da saúde, assistência social, segurança pública e direitos humanos. A deputada federal, Sâmia Bomfim (PSOL-SP), propôs a discussão depois que o projeto chegou à Câmara dos Deputados com aprovação maciça pelo Senado Federal.
Usuário vira criminoso
O texto da PEC, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), propõe incluir no artigo 5º da Constituição Federal, que diz respeito aos direitos e garantias individuais, o artigo para tornar crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins.
A deputada Sâmia Bomfim, ao requerer a audiência, destacou a urgência em debater o tema, ressaltando que a PEC foi aprovada, sem um debate adequado, numa clara tentativa de impedir a descriminalização do porte de pequenas quantidades de maconha pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“A gente não pode autorizar que isso seja aprovado na Câmara com esse grau de facilidade que eles querem. Sinceramente, parece provocação colocar como relator na CCJ o Ricardo Salles (PL-SP). Quer falar de crime e acusar todo mundo de traficante? Bem, o cara é réu por tráfico de madeira. E o cinismo de senadores como Jorge Seif (PL-RJ)? Mais uma vez, teve toneladas de haxixe identificadas na transportadora da sua empresa”, denunciou a parlamentar.
Entenda o contexto
Há quase 10 anos STF, analisa o Recurso Extraordinário (RE) 635.659, que trata da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/2006). A Ação Direta de Inconstitucionalidade é da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e questiona a pena imposta a um indivíduo em posse de apenas 3 gramas de maconha.
Em abril deste ano, a Suprema Corte formou maioria de 5 votos a 3 a favor da descriminalização do porte de maconha (apenas) para uso pessoal e pela definição de critérios que diferenciem o usuário do traficante. O julgamento foi suspenso após um pedido de vista do ministro Dias Toffoli.
Impactos negativos da PEC
Durante a audiência na CLP, diversos especialistas manifestaram sua preocupação com os impactos da PEC 45/2023.
O advogado Cristiano Maronna, especialista em direito penal econômico e diretor da Plataforma Justa, classificou a proposta como uma aberração jurídica, refutando o argumento de que o Supremo estaria invadindo uma competência exclusiva do Parlamento.
“Estamos diante da inércia do Congresso, que tem plena consciência de que a aplicação prática da Lei de Drogas é uma usina de injustiças. Na ausência de provas, presume-se a traficância com base na cor da pele, no local onde a pessoa é flagrada e na classe social. Portanto, a opção do Judiciário em fixar critérios objetivos é justamente uma resposta à omissão do Poder Legislativo”, defendeu o advogado
A Representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), Andrea Gallassi enfatizou que o problema de drogas é uma questão de saúde pública. E que ao Estado o enfrentamento para minimizar os danos causados pelo consumo, ao invés de adotar uma abordagem penal-militar que tem se mostrado ineficaz.
“Esse modelo penal-militar de criminalização foi base das legislações de quase todos os países a partir da década de 1970, lá no século passado, porque se tinha a ideia de que, ao se proibir, o uso seria coibido. No entanto, o que observamos hoje é que os efeitos dessa proibição são muito mais danosos do que o uso da substância em si”, argumentou a pesquisadora, que também é docente da Universidade de Brasília (UnB).
PEC do Racismo
Em relação à PEC 45, a presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Silvia Souza, afirmou que a proposta viola princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, como o princípio da lesividade. Ela destacou que a criminalização das drogas tem raízes no racismo científico e no histórico de antropologia criminal no Brasil.
De acordo com a advogada, o artigo 5º trata das garantias e direitos fundamentais, tanto individuais como coletivos e não pode sofrer mudanças: “É cláusula pétrea, não está sujeito à alteração para redução de direitos, muito menos para para inserir qualquer outro inciso que traga reprimenda ou criminalização”.
Negros serão os mais impactados
Já o historiador Dudu Ribeiro, diretor da ONG Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, ressaltou que o objetivo da PEC não é combater as drogas, mas aprofundar o genocídio e a supremacia branca, causando mais danos à população negra. Ele destacou casos de violência policial durante operações contra supostos traficantes para ilustrar os efeitos negativos dessa abordagem.
Para completar, o deputado Pastor Henrique Vieira, que conduziu a audiência na ausência de Sâmia, enfatizou que a atual política de drogas carrega traços de criminalização da pobreza e da violência contra a juventude das comunidades periféricas.
Precisa de 308 votos em 2 votações
A PEC 45 ainda precisa passar por cinco sessões de discussão antes da votação em primeiro turno. Depois, mais três sessões de discussão devem ser cumpridas antes da votação em segundo turno. São necessários pelo menos 308, ou 3/5 dos votos favoráveis, em cada turno, para a matéria ser aprovada.
Se aprovada com alterações, a matéria seguirá para análise novamente, também em dois turnos, no Senado Federal. Atualmente, a PEC aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara o deputado Ricardo Salles (PL-SP).
Com informações do Leandro Rodrigues.
Confira quem falou na audiência pública:
- Sr. Cristiano Avila Maronna, advogado e diretor do JUSTA
- Sra. Andrea Gallassi, representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC);
- Sra. Cidinha Carvalho, Presidente da Associação de Cannabis e Saúde (CULTIVE);
- Sra. Sílvia Souza, conselheira Federal da OAB/SP e Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB;
- Sra. Samira Bueno, diretora do Fórum de Segurança Pública;
- Sr. Eduardo Ribeiro, Diretor Executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas;
- Sr. André Carneiro Leão, defensor público federal e vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH)
- Sr. Michel Willian de Castro Marques, membro da Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA)
- Sr. Erik Torquato, advogado e membro da Rede pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma);
- Sra. Nathalia Oliveira da Silva, representante da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
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