Estados e municípios – que aprovaram leis para garantir a Cannabis no SUS – enfrentam o desafio de fornecer o medicamento para o paciente
“Por cinco vezes fui à Farmácia de Alto Custo para pegar o CBD (Canabidiol) para a minha filha, sem sucesso. Toda as vezes, eles pediam algo novo, que não havia sido dito antes. Eles fragmentam as informações para que computem mais atendimentos como solucionados”.
A denúncia é do servidor público, Adalberto Alfredo Schumann, pai da Grabriela. A jovem de 21 anos tem diagnóstico de epilepsia de difícil controle, retardo mental, lesão cerebral e autismo. E já recebe da Farmácia de Alto Custo de DF, quatro medicamentos para conter as crises.
Agora, o neurologista prescreveu o aumento na dose do CBD. Desde 2018, a família da Gabriela recebe a seringa de Canabidiol full spectrum (que contém os demais canabinoides da Cannabis) graças à uma ação judicial que moveu contra o estado.
Convulsões praticamente zeraram
“A Gabriela tinha 30 convulsões por dia, depois da Cannabis as crises praticamente zeraram. Ela também ficou mais sociável, houve redução da dor e melhora do sono”, explica o pai da moça.
Depois da última videoencefalograma monitorada, o neurologista indicou o CBD isolado, que é fornecido gratuitamente pela Secretaria de Saúde do DF.
Desde 2016, o DF tem lei para fornecer CBD
Muita gente não sabe, mas o DF foi a primeira unidade da federação a sancionar uma lei para garantir aos pacientes que sofrem com epilepsia refratária o fornecimento de Canabidiol – pelo menos no papel.
Na prática a situação parece ser diferente. A Lei 5.625/2016, de autoria do pastor evangélico – o então deputado distrital Rodrigo Delmasso (Rep/DF) inclui o Canabidiol na lista de medicamentos distribuídos gratuitamente dentro do Programa de Prevenção e Assistência Integral às pessoas com Epilepsia no Distrito Federal.
CBD no rol da Farmácia de Alto Custo
Além do CBD, o programa também fornece remédios como Levetiracetan, Etossuximida, Gabapentina, Lamotrigina, Vigabatrina, Topiramato, Propofol, Tilpental, Midazolan, Depakon e Locosamida.
A inclusão de medicamentos à base de Cannabis em programas de saúde pública como este seria um grande avanço, se quem precisa – de fato – tivesse acesso de forma simplificada e perene.
No DF, o fornecimento da medicação está restrita aos casos de epilepsia. Para ter acesso, os pacientes precisam comprovar o diagnóstico e apresentar exames de imagem como tomografia computadorizada de crânio e ressonância magnética do encéfalo, bem como exames neurofisiológicos e exames laboratoriais (pesquisa de líquor, analise molecular e exames de bioquímica genética).
Exigências limitam o acesso
Tantas exigências limitam e dificultam o acesso, como explica Paula Érica Paz Neves, diretora de relações públicas do Movimento Orgulho Autista do Brasil (MOAB).
“Não é simples marcar uma consulta com um neuropediatra na rede pública. Conseguir um prescritor de Cannabis é outra maratona. E ainda entregar todos os exames… A maioria não consegue”, diz a mãe atípica.
Leis precisam sair do papel
Para Adalberto, a lei precisa sair do discurso e do papel de forma impositiva. “Que se faça valer o que está na lei e seja implementada a distribuição do medicamento de forma real. Não há necessidade de tanta burocracia em casos de doenças raras”.
Para o servidor público, famílias que têm parentes em situações atípicas precisam de mais empatia. “Na grande mídia, o DF aparece como primeiro estado a fornecer o CBD. Só para inglês ver! Isso é pra ontem. Essa burocracia limita o acesso. Quem é pobre e não tem recurso e tempo para se deslocar inúmeras vezes, desiste do tratamento”, lamenta Adalberto.
O caso foi parar na delegacia
O caso da Gabriela – que foi parar na delegacia – é para ilustrar o desafio que os estados e municípios, que aprovaram leis semelhantes à do DF têm pela frente: como regular o fornecimento da Cannabis via Sistema Único de Saúde de forma regular e por um preço que não onere o estado.
Contrato milionário
Por meio da Lei de Acesso à Informação Pública (LAI), a reportagem conseguiu descobrir que em 2022, apenas 17 pessoas com epilepsia receberam CBD em todo Distrito Federal. O valor total do contrato foi de R$ 853.039,01.
Atendendo ao pedido da reportagem, a Secretaria de Saúde do DF (SESDF) informou, na ocasião, que a farmacêutica Prati Donaduzzi venceu a licitação para fornecer o produto à base de Canabidiol na solução oral de 200 mg/ml, no frasco de 30 ml.
Cada unidade de 30ml por R$ 1.850
Cada unidade do medicamento saiu por pouco mais de R$ 1.850. O valor praticado pela farmacêutica que venceu a licitação é quase três vezes maior do que o preço do miligrama do CBD importando, segundo a Dra. Marianna Laíze dos Santos, médica com Pós-Graduação em Cannabis Medicinal.
“Os produtos importados custam, em média, R$ 700 reais o frasco de 30ml com 5000mg de CBD. Fazendo as contas, o miligrama de CBD da Prati, na formulação de 200mg/ml, custa cerca de 0,40 centavos. Já o importado custa 0,15 centavos o miligrama de CBD”, detalhou a médica.
Licitações em disputa jurídica
O advogado, mestre em Direito Público e professor do Instituto Plenum Brasil, João Lucas Lembi, explica que muitas licitações não são concluídas pelas disputas que hoje ocorrem no mercado.
“As empresas que têm registro para comercializar nas farmácias impugnam o processo de licitação quando a concorrente, que opera via RDC 660, vence com um menor preço e um produto de alta qualidade”, detalha.
Fitofármaco X medicamento
De acordo com o advogado, a Cannabis é um fitofármaco, que não necessariamente precisa de registro na Anvisa para ser fornecido via SUS, porque a Agência já autoriza a entrada desses produtos no país.
“A nova lei de licitação diz que medicamentos precisam ter registro na Anvisa para participar dos pregões. Entretanto, não cita os fitofármacos, onde os produtos derivados da Cannabis se enquadram”, ensina.
Princípio do menor preço
Para completar, diz João Lembi, um dos princípios na administração pública na aquisição de produtos, diz respeito ao menor preço, como está no artigo 11, da Lei 14.133/2021, sempre prezando pela qualidade.
“Não vejo como benéfico esse movimento das empresas pela disputa do mercado na via judicial, mas prejudicial. Isso só dificulta a conclusão do processo e quem perde é o paciente que fica sem o remédio”, conclui o advogado.
Falta comprometimento
O deputado Estadual, Caio França (PSB), autor da lei em São Paulo que irá fornecer remédio à base de Cannabis no SUS, critica a falta de comprometimento. Em SP, por exemplo, o Executivo sancionou a lei em janeiro de 2023.
“Já estamos caminhando para um ano de uma lei sem efetividade, porque não foi publicada a regulamentação com as diretrizes de distribuição, sendo que o protocolo está pronto e aprovado pelo grupo de trabalho formado pela Secretaria Estadual de Saúde”, lamenta o político.
Morosidade não faz sentido
Para o parlamentar, não faz sentido tamanha morosidade. “É preciso dar celeridade a esse processo. Muitos estados e municípios nos procuram para saber sobre a regulamentação da lei paulista, tendo em vista que aqui tudo se torna referência para o País”, alerta Caio França.
Para Paula Paz, se o governo regulamentasse a distribuição sistemática e nacional do medicamento via SUS, o preço seria mais justo para os cofres públicos. “Hoje, existe esse monopólio da indústria farmacêutica e quem perde são os pacientes atípicos”, lamenta Paula Paz.
Para completar, o CBD ainda está em falta na Secretaria de Saúde do DF. “É só entrar no site da Farmácia de Alto Custo e olhar. Lá diz que o remédio não está disponível. É muito difícil! Depois de toda uma maratona para tentar conseguir a inclusão desse medicamento no tratamento da Gabriela, o remédio está em falta. Nos sentimos humilhados com esse descaso”, denuncia Adalberto.
O que diz a Secretaria de Saúde do DF?
Por meio de nota, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal informou que o Canabidiol 200 mg/ml em solução oral de 30 ml está em processo de compra para que o abastecimento seja normalizado.
“O desabastecimento se deu devido ao fracasso de certames licitatórios. Salientamos que o processo de compra emergencial está em andamento. Frisamos que, para receberem o medicamento, os pacientes devem estar enquadrados nos critérios terapêuticos de inclusão estabelecidos por esta Secretaria. Ao serem avaliados e estarem com os cadastros feitos, assim que o abastecimento for normalizado, receberá o medicamento normalmente”, conclui a nota.
Publicado originalmente no Portal Cannabis & Saúde: