Por Manuela Borges

Dois Projetos de Lei tramitam na Câmara e Senado para alterar a Lei dos Planos de Saúde e a Lei que cria a ANS no sentido de ampliar o direito à saúde

No mesmo dia (08/06) em que a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que as operadoras dos planos de saúde não precisam mais cobrir procedimentos que estejam fora da lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a reação do Congresso foi imediata. Parlamentares, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, propuseram Projetos de Lei para tentar reverter a interpretação do STJ.

Na Câmara, o deputado federal Luis Miranda (Republicanos/DF) apresentou o Projeto de Lei 1549/2022. O texto altera a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998) e a Lei que cria a ANS (Lei 9.961/2000), para tornar o rol de procedimentos em saúde exemplificativo, isto é, em uma lista aberta passível de interpretação para a concessão de procedimentos e medicamentos que não estão expressos no rol da ANS. “Estamos limitando (decisão do STJ) o tratamento de um autista, de uma criança doente ou de um adulto que está em um tratamento constante – indicado pelo médico que o acompanha – com tratamentos alternativos, como a própria Cannabis, que é aprovada pela Anvisa. E a ignorância da população acha que não é. E nós não produzimos a matéria-prima no Brasil. Temos que importar por uma fortuna, por não entender que essas famílias estão sofrendo”, se solidariza o autor da proposta.

Simultaneamente no Senado, o Senador Fabiano Contarato (PT/ES) apresentou outro texto, o PL 1557/2022. A redação também prevê alterar a Lei dos Planos de Saúde para definir que o rol apresentado pela ANS sirva apenas de referência básica mínima para cobertura assistencial pelos planos de saúde. Para embasar a justificativa, o autor do PL usou dados para contra argumentar a tese de que o rol exemplificativo coloca em risco a saúde financeira das operadoras. “Contudo, tal argumento não se sustenta, uma vez que, segundo dados da ANS, a receita do setor de planos de saúde atingiu R$ 217 bilhões em 2020, alta de 4,7%, enquanto a taxa de sinistralidade de 2020 ficou em 75,4%, uma queda de sete pontos percentuais. As despesas também cresceram, mas sempre abaixo das receitas totais, com aumento do lucro das empresas”, contesta na redação do PL.

Nessa semana, mães e pais atípicos, de várias partes do país, estão em Brasília para fazer um corpo a corpo com os parlamentares no Congresso na tentativa de conquistar apoio aos projetos apresentados. O grupo visita todas as lideranças de partidos para pressionar e cobrar adesão à mudança legislativa. Sarita Melo conta que veio de Guarulhos (SP) para lutar pelo direito da filha continuar recebendo o Canabidiol pelo plano de saúde. “O rol taxativo atinge a todas as pessoas. O nosso interesse é de que o entendimento do STJ não seja unânime, que passe a ter uma lei que garanta e assegure os usuários da saúde suplementar. E para isso, a gente precisa do apoio de todos os parlamentares, apoio do presidente da Câmara e do Senado para ter uma segurança legislativa”, defende Sarita.

O doutor Vinícius Barbosa, especialista em Psiquiatria e integrante do Núcleo de Cannabis Medicinal no Hospital Sírio-Libanês, alerta para a interrupção dos tratamentos de pacientes que fazem uso contínuo de medicamentos como o Canabidiol, por exemplo. “Existem diversos riscos com a interrupção de um tratamento que está sendo efetivo. O impacto vai depender da condição de cada paciente, podendo voltar a apresentar crises convulsivas, que podem ser graves e levar a risco de morte. Outros podem voltar a apresentar comportamentos disruptivos e agressivos, colocando-se, e a outros, em risco de integridade física. Além dos efeitos negativos a longo prazo e de piora em relação ao neurodesenvolvimento e neurofuncionamento”, explica o médico.

O rol taxativo, também chamado de rol exaustivo, estabelece uma lista determinada que não dá margens a outras interpretações. De acordo com a advogada Adriana Monteiro, isso significa dizer que que os planos de saúde vão se orientar especificamente por essa lista restritiva e a decisão administrativa, por exemplo, será sempre negar quando o procedimento não estiver no rol. Até então, o rol da ANS – que prevê mais de 3,7 mil procedimentos – vinha sendo considerado exemplificativo pela maior parte de decisões judiciais. Dessa forma, os pacientes que tivessem procedimentos não expressos na lista da ANS poderiam recorrer à Justiça para ampliar o atendimento. Na visão da advogada Adriana, a cobertura definida pela ANS sempre será insatisfatória, isso porque, segunda ela, é impossível definir um rol de procedimentos onde estão elencadas todas as possibilidades de tratamentos para abranger a totalidade das doenças que existem.

“Por exemplo, homecare é algo que não está no rol. Apenas para neoplasia maligna. Para os demais casos, existem decisões do STJ que dizem que a internação domiciliar é apenas uma internação fora do ambiente hospitalar e deve ser privilegiada do mesmo modo. Também existe jurisprudência consolidada onde se diz que cláusula contratual que impede ou omite a possibilidade do homecare é nula. E agora? O que vale? As pessoas precisarão litigar em juízo, apresentar teses, enfrentar discussões que a vida e o tempo não permitem. Dois dias sem homecare é a morte de alguém. Às vezes uma hora é suficiente para matar. Quem responderá por essas mortes”, questiona a advogada. O advogado Rafael Kruel compartilha da mesma opinião, “é necessário levar em conta que a atualização da ANS não acompanha a velocidade de evolução dos tratamentos. A medicina evolui diariamente com novas técnicas. Ainda que o prazo de atualização tenha sido reduzido para 6 meses, não é o suficiente para o paciente que precisa de uma solução de imediato”, afirma Kruel.

Segundo o advogado especializado em Direito da Saúde, as operadoras já começaram a internalizar a decisão do STJ de forma imediata. Ele conta que na última sexta-feira teve uma audiência de conciliação com o plano de saúde da Geap e operadora sequer designou alguém para participar. “A ação dizia respeito ao fornecimento de um medicamento à base de Canabidiol para uma paciente que sobre de fibromialgia. A ausência da parte demonstra um total desprezo. Isso já é um reflexo do julgamento do STJ”, acredita.

De acordo com o advogado Kruel, todos os pacientes que necessitam de terapias não incluídas no rol da ANS serão diretamente afetados pela decisão do STJ. “Podemos citar como exemplo, o caso das crianças portadoras de Transtornos do Espectro Autista (TEA) que têm tido suas vidas transformadas após o início do tratamento à base de Canabidiol. Esse grupo será diretamente atingido. Porém, com a devida representação poderão manter seus tratamentos. A decisão (do STJ) vai dificultar, mas não impossibilitar a obtenção do tratamento pela via judicial. Isso ocorre, pois, na mesma decisão ficou determinado que existem exceções. Assim, na prática é possível a obtenção de cobertura ainda que não conste no rol da ANS. Porém, tal decisão aumentará a quantidade de judicialização de pedidos”, prevê Kruel.

Apesar de o STJ decidir pelo rol taxativo, o voto vencedor do Ministro Boas-Cueva previu ressalvas como explica o advogado Danniel Moura. “É importante levar em consideração que, embora tenha indubitável força argumentativa, afinal é uma decisão da Segunda Seção do STJ em Recurso Especial, o precedente não é qualificado (não foi decidido em incidente de recursos repetitivos), o que ainda permite aos juízes de 1º grau e desembargadores decidam de forma diferente do STJ. Além disso, o precedente refere-se aos instrumentos normativos que regulamentam a amplitude mínima obrigatória da cobertura dos planos de saúde, admitindo-se, portanto, a possibilidade da contratação de coberturas ampliadas e maior competitividade entre as operadoras”, afirma o Moura.

STF é a última instância
Na interpretação do ministro aposentado do STF, Marco Aurélio Mello, a visão de que os planos possuem obrigação plena é distorcida.

Essa queda de braço entre planos de saúde e consumidores ainda deve chegar ao Supremo Tribunal Federal, a última instância do judiciário. Em março desse ano, a Associação Brasileira de Proteção aos Consumidores de Planos e Sistema de Saúde (SAÚDE BRASIL) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 7.088/DF) na Suprema Corte questionando a constitucionalidade dos §§ 4º, 7º e 8º do Art. 10 da Lei dos Planos de Saúde, no sentido de que o rol da ANS seja considerado meramente exemplificativo. A ação de relatora do ministro Luís Roberto Barro ainda não entrou na pauta de julgamentos.

O ministro aposentado do STF, Marco Aurélio Mello, conversou com exclusividade com o portal Cannabis & Saúde e emitiu o seu ponto de vista em relação à disputa. “Entendo que o plano encerra contrato signalagmático (bilateral), ou seja, com direitos e obrigações”. Para o magistrado, a visão de que a adesão a determinado plano implica em obrigação plena é distorcida. “ Portanto, caso a caso cabe examinar a extensão do plano quanto às obrigações de proporcionar se este ou aquele procedimento. Há de aguardasse o desdobramento dessa situação jurídica. Sendo premissa única a distinção entre público e privado. Se de um lado o Estado está de forma irrestrita obrigado a proporcionar a saúde, de outro, a inciativa privada fica compelida a fazê-lo na extensão do que foi pactuado e contratado. A saúde é dever primordial do Estado, cumpre-lhe viabilizar procedimento”, afirmou o ministro Marco Aurélio Mello.

Apesar de o art. 196 da Constituição Federal garantir o acesso universal e irrestrito à saúde, atualmente 49 milhões de brasileiros contratam operadoras de saúde na esperança do pleno atendimento, uma vez que é notória a dificuldade de acesso a inúmeros procedimentos via Sistema Único de Saúde. Para o advogado Kruel, o julgamento do STJ vai impactar diretamente nos cofres públicos. “A decisão trará prejuízos não só para os usuários de planos de saúde. A restrição imposta impactará diretamente no SUS, já que a tendência é de que os pedidos migrem para Sistema Único de Saúde sobrecarregando ainda mais o sistema.

Já advogado Moura faz uma ponderação, “a Primeira Seção do STJ já definiu (e inclusive em recurso especial repetitivo, isto é, esse é um caso de precedente qualificado) que o rol de assistência do SUS também é taxativo, com exceções semelhantes aos que serão aplicados ao rol da ANS. Contudo, mesmo com essa restrição, em demandas envolvendo o SUS o Judiciário costuma ser mais sensível, pois há uma obrigação constitucional (e não só legal) de custear procedimentos envolvendo o direito à saúde”, afirma.

Published On: Junho 13th, 2022 / Categories: Notícias / Tags: /